Acorda, senta
em sua cama, levanta, volta a deitar. Lá fora gatos no cio, completam o ciclo
de suas vidas trepando ensandecidamente nos muros, os cachorros das casas ao
lado latem sem parar para o anoitecer. E no escuro seus olhos enormes estão
fixos no teto. Ela não consegue dormir, ela não consegue nem mesmo pregar os
olhos sem que aquela imagem lhe venha a mente.
A moça dos
olhos tristes. Não tristes como os dela, ou como os de todo o mundo que a
cercava pareciam ser. Não aquela tristeza de tédio do mundo que nunca soube
acolher todos por igual, não tristes como a desesperança que parece alcançar
todo mundo um dia. Não, aquele era um outro pedaço de tristeza, tristeza que
vem do sofrimento real, em carne e osso, que toma a força, espaço no nosso
olhar.
Era como o
olhar da sua mãe. Ela sabia. Ela jamais pode esquecer. Da mesma forma que ela
não poderia esquecer o som suave da voz da mãe, a sua capacidade de
acalma-la somente com um olhar e um
toque de mãos, que queria dizer tudo vai dar certo, o seu amor pelos livros, o
doce cheiro do café que a mãe fazia. Nada daquilo iria embora.
A foto amarelada e já gasta, a única que
restara da mãe, que mostrava o sorriso torto, os olhos castanhos brilhantes e
os cabelos negros caindo em cascatas, seria engolida pelo tempo, que não
perdoa, mas as lembrança ficariam firmes como rocha.
Era essas
lembranças que agora percorriam a sua mente sem parar, indo e vindo. E embora
ela quisesse chorar, nenhuma lágrima podia cair agora de seu rosto. No escuro
ela podia sentir o calor de chico, o gato, que dormia tranquilamente a seu
lado, mas ela continuava desperta.
A mãe viera
visita-la naqueles olhos, que não era os dela, mas poderia sê-lo, ela queria
que fosse. Se a mãe ali estivesse teria tirado Simone daquele caos que havia se
entregado. Se a mãe estivesse ali, poderia lhe dizer que tudo daria certo,
afinal.
Mas não, ela se
fora. Cedo, de forma trágica. Arrancada da vida de Simone, que tivera que
encarar então o mundo sozinha.
Simone se
lembrava ainda, os olhos que eram alegres, aos poucos ficando roxos, o toque
suave da pele, agora marcada por hematomas, e por fim o vermelho brilhante do
sangue escorrendo em bicas pelo chão misturado com o negro do café, e o último
brilho de vida no olhar dela.
Ela se fora,
morta por aquele cara que jurou dar abrigo e proteger as duas, assassinada por
alguém que dizia amá-las.
Ela se lembra
também daquele olhar frio, dos gritos na noite e do rosto duro, de alguém que
começou doce e tornou-se amargo. Ela não conseguia entender, e não queria.
Tinha sentido ódio muito tempo daquele homem, que ela não mencionava mais o
nome, mas o qual estava impresso em letras garrafais em cada entroncamento da
sua memória, em suas muitas promessas de vingança.
Ela não o
perdoara, ao contrário do que pregava a fé cristã, isso não fazia parte dela, o
perdão, a fé, aquele deus homem não tinha salvado sua mãe.
Aquele deus
homem, e aqueles homens tinha deixado o assassino solto, cidade pequena, crime
passional, ela mereceu, ela o estava traindo, tinham lhe dito, ela era mãe
solteira já antes de conhece-lo, pregavam todos.
Ninguém ajudara
sua mãe, ninguém tinha pena dela. A acusavam, acusavam a vítima, pelo fato de
ser mulher, e naturalmente cheia do pecado, como diziam. Como tinham dito seus
avô após a mãe engravidar de Simone.
E a mãe foi
sentenciada a morte, por um motivo: ser mulher nesse mundo de homens.
E por isso
Simone também foi sentenciada, e a pena: a tristeza que a perseguia, os
pesadelos, os muitos lares adotivos que não deram certo, a solidão, tendo que
encarar por si só a selva lá fora. Sem ninguém para lhe dar a mão.
Até agora. A
moça dos olhos tristes lhe olhará bem dentro. E lhe deu a mão. E lhe sorriu. E
lhe disse palavras amáveis. E ali estava alguém que compartilhava de sua
tristeza, mas que era forte, como Simone não era. Ali estava uma tristeza que
lhe dizia: “Fui machucada, brutalizada, odiada, mas tudo pode dar certo, tudo
pode ser consertado”.
A moça dos
olhos tristes, que todo dia, com seu dinheiro contado lhe pedia um sanduiche
mais barato e nada mais. A moça lhe tocara e ali estava um alma amiga, uma luz
nas trevas, afinal.
E dentro de seu
corpo o vazio, a solidão que ela não consegue preencher, pode sentir essa
sensação de encontro.
Chico se estica
ao seu lado. Na cabeceira, ao lado da foto da mãe o despertador toca. E
Ela levanta em seu cubículo quarto, sala, cozinha, banheiro, tudo junto, faz seu café, acende seu cigarro e saboreia lenta e prazeirosamente a sensação de que embora seja vítima, nesse mundo de homens, ela tem uma alma irmã. Então se veste coloca os fones e o seu querido e ensandecido Cobain, berra seus versos de depressão juvenil.
Ela levanta em seu cubículo quarto, sala, cozinha, banheiro, tudo junto, faz seu café, acende seu cigarro e saboreia lenta e prazeirosamente a sensação de que embora seja vítima, nesse mundo de homens, ela tem uma alma irmã. Então se veste coloca os fones e o seu querido e ensandecido Cobain, berra seus versos de depressão juvenil.
Simone termina seu cigarro pega seu uniforme e sai para mais um dia de
hamburguer, fritas, Mc Donald's, e o que seria a sua morte diária, agora é uma
possibilidade de encontro, de uma luz nas trevas, de uma amiga, uma irmã.
Porque um dia quem sabe, tudo pode dar certo, apesar de tudo.
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