quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Apesar de tudo

Acorda, senta em sua cama, levanta, volta a deitar. Lá fora gatos no cio, completam o ciclo de suas vidas trepando ensandecidamente nos muros, os cachorros das casas ao lado latem sem parar para o anoitecer. E no escuro seus olhos enormes estão fixos no teto. Ela não consegue dormir, ela não consegue nem mesmo pregar os olhos sem que aquela imagem lhe venha a mente.
A moça dos olhos tristes. Não tristes como os dela, ou como os de todo o mundo que a cercava pareciam ser. Não aquela tristeza de tédio do mundo que nunca soube acolher todos por igual, não tristes como a desesperança que parece alcançar todo mundo um dia. Não, aquele era um outro pedaço de tristeza, tristeza que vem do sofrimento real, em carne e osso, que toma a força, espaço no nosso olhar.
Era como o olhar da sua mãe. Ela sabia. Ela jamais pode esquecer. Da mesma forma que ela não poderia esquecer o som suave da voz da mãe, a sua capacidade de acalma-la  somente com um olhar e um toque de mãos, que queria dizer tudo vai dar certo, o seu amor pelos livros, o doce cheiro do café que a mãe fazia. Nada daquilo iria embora.
  A foto amarelada e já gasta, a única que restara da mãe, que mostrava o sorriso torto, os olhos castanhos brilhantes e os cabelos negros caindo em cascatas, seria engolida pelo tempo, que não perdoa, mas as lembrança ficariam firmes como rocha.
Era essas lembranças que agora percorriam a sua mente sem parar, indo e vindo. E embora ela quisesse chorar, nenhuma lágrima podia cair agora de seu rosto. No escuro ela podia sentir o calor de chico, o gato, que dormia tranquilamente a seu lado, mas ela continuava desperta.
A mãe viera visita-la naqueles olhos, que não era os dela, mas poderia sê-lo, ela queria que fosse. Se a mãe ali estivesse teria tirado Simone daquele caos que havia se entregado. Se a mãe estivesse ali, poderia lhe dizer que tudo daria certo, afinal.
Mas não, ela se fora. Cedo, de forma trágica. Arrancada da vida de Simone, que tivera que encarar então o mundo sozinha.
Simone se lembrava ainda, os olhos que eram alegres, aos poucos ficando roxos, o toque suave da pele, agora marcada por hematomas, e por fim o vermelho brilhante do sangue escorrendo em bicas pelo chão misturado com o negro do café, e o último brilho de vida no olhar dela.
Ela se fora, morta por aquele cara que jurou dar abrigo e proteger as duas, assassinada por alguém que dizia amá-las.
Ela se lembra também daquele olhar frio, dos gritos na noite e do rosto duro, de alguém que começou doce e tornou-se amargo. Ela não conseguia entender, e não queria. Tinha sentido ódio muito tempo daquele homem, que ela não mencionava mais o nome, mas o qual estava impresso em letras garrafais em cada entroncamento da sua memória, em suas muitas promessas de vingança.
Ela não o perdoara, ao contrário do que pregava a fé cristã, isso não fazia parte dela, o perdão, a fé, aquele deus homem não tinha salvado sua mãe.
Aquele deus homem, e aqueles homens tinha deixado o assassino solto, cidade pequena, crime passional, ela mereceu, ela o estava traindo, tinham lhe dito, ela era mãe solteira já antes de conhece-lo, pregavam todos.
Ninguém ajudara sua mãe, ninguém tinha pena dela. A acusavam, acusavam a vítima, pelo fato de ser mulher, e naturalmente cheia do pecado, como diziam. Como tinham dito seus avô após a mãe engravidar de Simone.
E a mãe foi sentenciada a morte, por um motivo: ser mulher nesse mundo de homens.
E por isso Simone também foi sentenciada, e a pena: a tristeza que a perseguia, os pesadelos, os muitos lares adotivos que não deram certo, a solidão, tendo que encarar por si só a selva lá fora. Sem ninguém para lhe dar a mão.
Até agora. A moça dos olhos tristes lhe olhará bem dentro. E lhe deu a mão. E lhe sorriu. E lhe disse palavras amáveis. E ali estava alguém que compartilhava de sua tristeza, mas que era forte, como Simone não era. Ali estava uma tristeza que lhe dizia: “Fui machucada, brutalizada, odiada, mas tudo pode dar certo, tudo pode ser consertado”.
A moça dos olhos tristes, que todo dia, com seu dinheiro contado lhe pedia um sanduiche mais barato e nada mais. A moça lhe tocara e ali estava um alma amiga, uma luz nas trevas, afinal.
E dentro de seu corpo o vazio, a solidão que ela não consegue preencher, pode sentir essa sensação de encontro.
Chico se estica ao seu lado. Na cabeceira, ao lado da foto da mãe o despertador toca. E
Ela levanta em seu cubículo  quarto, sala, cozinha, banheiro, tudo junto, faz seu café, acende seu cigarro e saboreia lenta e prazeirosamente a sensação de que embora seja vítima, nesse mundo de homens, ela tem uma alma irmã. Então se veste coloca os fones e o seu querido e ensandecido Cobain, berra seus versos de depressão juvenil.

 Simone termina seu cigarro  pega seu uniforme e sai para mais um dia de hamburguer, fritas, Mc Donald's, e o que seria a sua morte diária, agora é uma possibilidade de encontro, de uma luz nas trevas, de uma amiga, uma irmã. Porque um dia quem sabe, tudo pode dar certo, apesar de tudo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário